quarta-feira, novembro 08, 2006

Quem sabe, vai longe…

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Nos semanários do último fim-de-semana chamava a atenção, pelo seu impacto, o anúncio duma conhecida instituição bancária: uma enorme via BUS (adaptada ao nome do banco) em fundo verde, com destino a Madrid e com os dizeres: “Quem sabe, chega mais longe…”. Coisa de criativos, geralmente pagos a peso de ouro. À primeira vista parecia tratar-se de publicidade ao TGV ou a um meio de transporte ainda mais modernista que se move à velocidade da luz ou do pensamento. Mas era mesmo um banco e a imagem não é deslocada: ao simples bater duma tecla, os capitais circulam instantaneamente entre bancos e bolsas de todo o mundo, numa ciranda de especulação financeira que dá lucros fabulosos a uns poucos, à custa da desgraça de boa parte da humanidade.

Escrúpulos morais e políticos à parte (para quem conseguir separar o inseparável), num período em que a nossa auto-estima tem andado por baixo, poderíamos até orgulhar-nos de ter pelo menos um banco e uma equipa de criativos que dá brado em Espanha. Eis que um balde de água gelada caiu sobre este assomo de orgulho nacional: então não é que estamos a falar do mesmíssimo banco que, na passada quinta-feira, viu as suas instalações na Calle Serrano, em Madrid, invadidas por dezenas de agentes da Guardia Civil, da Fiscalia Anticorrupção e das Finanças, ás ordens do famoso juiz Baltazar Garzón? Não se trata de um sonho nem de um filme de Pedro Almodôvar, mas da pura e dura realidade.

Haverá quem se interrogue se não se trata de uma tenebrosa manobra castelhana para abalar ainda mais o moral das “nossas tropas”. Mas logo um comunicado veio sossegar os espíritos inquietos: as investigações desencadeadas visaram clientes e não o próprio banco, sendo bloqueadas contas com um saldo global de 5,5 milhões € – coisa pouca, como esclareceu o banqueiro Ricardo Salgado – no âmbito de um processo por fraude fiscal que, em Espanha, já atinge 1800 milhões de euros. A desfaçatez é notável: 1 milhão e cem mil contos, uma insignificância para quem está habituado a olhar o mundo de cima. Além disso, a investigação “visa apenas os clientes”. O banco, coitadinho, apenas lhes oferecia a via BUS para o voo instantâneo de milhões de euros. Como aquele detergente que LAVA MAIS BRANCO – e se a roupa saiu rasgada da máquina, a culpa é da costureira…

O que torna esta história verdadeiramente cosmopolita e excitante é que os fundos foram retirados de Espanha através de uma rede de contas, cujos titulares eram sociedades trust criadas na Madeira e noutros paraísos fiscais. Daí “o dinheiro era enviado a outras entidades bancárias no estrangeiro [nomeadamente em França] para, finalmente, através do Luxemburgo, voltar a entrar em entidades bancárias em Espanha, mas no nome de sociedades não residentes. A estrutura destas sociedades impede normalmente que se conheça o verdadeiro dono, já que à frente está um gestor ou testa-de-ferro cuja localização é de extrema dificuldade”, sublinha o comunicado da Guardia Civil.

Curiosamente, num mundo cada vez mais global, a filial deste banco no Funchal “responsabilizava-se unicamente por apresentar contas perante as autoridades ficais portuguesas”. Patriotismo serôdio ou mero expediente para empatar a investigação de um esquema de evasão fiscal que remonta, pelo menos, a meados de 2004? O desenrolar das investigações, de âmbito internacional e conduzidas pelo juiz Baltazar Garzón, promete revelações escaldantes…

Portugal surge, assim, duplamente associado a este processo: através dum banco e do offshore da Madeira, região muito badalada a propósito da nova Lei das Finanças Regionais. O desvario verbal de AJJ e de alguns acólitos que ameaçam “reactivar a FLAMA”, não pode esconder o essencial: a Madeira perde centenas de milhões de euros do próximo Quadro Comunitário de Apoio e do Estado devido ao empolamento do seu rendimento per capita por capitais que circulam na zona franca e a colocam artificialmente a um nível de desenvolvimento próximo do da Grande Lisboa. Capitais sem rosto e sem rasto que nada contribuem para o desenvolvimento regional e a melhoria das condições de vida na Madeira que, na realidade, está mais próxima dos Açores ou do Alentejo.

Espantoso é que, na discussão de um Orçamento que se anuncia de rigor, o governo nada faça para acabar com esta vergonha que é a principal fonte de evasão fiscal da banca e coloca Portugal nas rotas do crime internacional. Aqui ao lado, tais práticas são tratadas como casos de polícia; por cá, ainda ganham a taluda. Quem sabe, sabe…

Alberto Matos

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