terça-feira, abril 11, 2006

Quadrícula

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Não posso começar esta crónica sem três notas prévias. A primeira sobre a morte, no passado 6 de Abril, de António Joaquim do Carmo que a maioria dos leitores só identificará se vos disser que foi marido de Catarina Eufémia. Filho do mestre sapateiro Adolfo do Carmo – originário do anarco-sindicalismo e dinamizador, com Francisco Miguel, das primeiras células comunistas do Baixo Alentejo – o jovem António herdou o “bichinho” revolucionário e distinguiu-se pelos dotes de oratória que lhe valeram na sua terra natal, Baleizão, a alcunha de “Carmona”. Após o assassinato de Catarina, com três filhos para criar mas sem nunca vergar a espinha, remeteu-se a um silêncio a que o 25 de Abril só episodicamente o arrancou. Desprezando o latifúndio assassino do seu grande amor, desprendido de bens materiais, quis, num último gesto simbólico, que as suas cinzas fossem lançadas ao Guadiana. Morreu convicto dos seus ideais, aberto à mudança e a novos desafios. Aos seus filhos Maria Catarina, Adolfo e José (o mais novo, ao colo da mãe quando esta foi varada por uma bala assassina), um abraço de homenagem a este homem simples e bom, com alma de poeta.

Após a crónica da semana passada, sobre a famigerada CPE que pôs a França em ebulição, quero destacar o recuo do primeiro-ministro Villepin, ao retirar o artigo 8.º – a primeira reivindicação dos estudantes e trabalhadores. É uma primeira vitória na guerra prolongada contra a precariedade e uma grande derrota de toda a direita, em especial do trio Chirac – Villepin – Sarkozy que poderá ser varrido do poder, em 2007. Mas não basta a alternância, como mostrou a experiência da “gauche plurielle” que envolveu socialistas, comunistas e “verdes”, é preciso inverter o rumo das políticas neoliberais e do PEC que conduziu a França e a Europa ao desastre económico e social. O mesmo direi em relação à Itália, onde se festeja o afastamento da direita mafiosa de Berlusconi mas está por desbravar a alternativa das políticas, no saco de gatos da vencedora coligação “Oliveira”.

Por cá, entre a visita de Sócrates a França e o jogging na baía de Luanda, sucedem-se anúncios de encerramentos de escolas e maternidades por todo o interior do país. A matriz destas medidas é a mesma que ditou o aumento do IVA para os 21% e está na origem da orgia especulativa das OPA’s e dos milhões de lucros anunciados pela banca, regados por benefícios e isenções ficais inaceitáveis.

A motivação desta fúria do “fecha a porta e apaga a luz” de escolas e maternidades é claramente economicista, em obediência aos critérios do “estúpido” PEC a quem Sócrates e Cavaco juraram fidelidade. Mas tem outra consequência: a degradação da qualidade de vida também no litoral, já sobrelotado, onde a construção de novos hospitais, pontes e viadutos agrava o caos da selva urbana, onde o tempo necessário para percorrer 10 quilómetros, de automóvel, de transporte público ou até de ambulância é equivalente ao que se gasta desde a raia ao perímetro dos grandes centros.

Vistas a partir do interior do país, estas medidas são ainda mais inaceitáveis porque representam uma dupla discriminação negativa para quem já se viu privado dos chamados “benefícios do desenvolvimento”. Agravam as desigualdades inter e intra-regionais e o processo de desertificação humana que, por sua vez, estimula a desertificação física do território.

Nas escolas, a bitola rígida dos dez alunos por sala ignora a diferença abissal que existe entre uma escola na Amadora ou na cidade de Beja, entre esta e a sua congénere numa freguesia rural, sem falar já do interior do concelho de Mértola ou de Almodôvar – onde a deslocação de alunos de algumas localidades da serra do Caldeirão para a sede do concelho os obrigará a percorrer cerca de 60 Km diários, por caminhos que não são propriamente os da auto-estrada Lisboa-Algarve. Mesmo com poucos alunos (e sem excluir, nalguns casos, o seu agrupamento numa aldeia vizinha), a escola pode ser reconvertida como centro comunitário, biblioteca ou espaço Internet, onde os mais idosos e as crianças partilhem saberes. É inaceitável o encerramento puro e simples – algumas foram vendidas como discotecas –, autêntico prenúncio de morte da aldeia ou do monte.

O que choca é o unilateralismo de ministérios como a Saúde e a Educação – a consulta às autarquias não passa de mera formalidade, apesar de estas terem hoje a cargo o ensino básico. Em quase todos os países europeus, o ensino básico e o secundário estão a cargo das regiões. Em Portugal, entre o nível micro das autarquias e o nível macro ministérios, sobra um deserto de irresponsabilidade da administração central que faz a quadrícula do território como um exército de ocupação.

Alberto Matos

2 comentários:

Trilby disse...

Quero também prestar homenagem ao António Joaquim do Carmo que nem soube que tinha morrido.

Quanto aos outros assuntos do texto só posso assinar por baixo.

Caiê disse...

Realmente, se não dissesses o nome da mulher do António Joaquim do Carmo, tinha-me passado como anónimo. Tiro-lhe o chapéu!