Um texto de Rita Ferro Rodrigues
Carminho senta-se nos bancos almofadados do BMW da mãe. Chove lá fora. Encosta o nariz ao vidro para disfarçar duas enormes lágrimas que lhe rolam pela face. A mãe conduz o carro e aperta-lhe ternamente a mão. Há muito trânsito na Lapa ao fim da tarde. A mãe tem um olhar triste e vago mas aperta com força a mão da filha de 18 anos. Estão juntas. A caminho de Espanha.
(Mais abaixo na cidade)
Sandra senta-se no banco côr de laranja do autocarro 22 que sai de Alcântara. Chove lá fora. Encosta o nariz ao vidro para disfarçar duas enormes lágrimas que lhe rolam pela face. A mãe está sentada ao lado dela. Encosta o guarda-chuva aos pés gelados e aperta-lhe ternamente a mão. Há muito trânsito em Alcântara ao fim da tarde. A mãe tem um olhar triste e vago mas aperta com força a mão da filha de 18 anos. Estão juntas. A caminho da casa de uma Senhora.
O BMW e o autocarro 22 cruzam-se a subir a Avenida Infante Santo.
Carminho despe-se a tremer sem nunca conseguir estancar o choro. Veste uma bata verde. Deita-se numa marquesa. É atendida por uma médica que lhe entoa palavras doces ao ouvido, enquanto lhe afaga o cabelo. Carminho sente-se a adormecer depois de respirar mais fundo o cheiro que a máscara exala. Chora enquanto dorme.
Sandra não se despe e treme muito sem conseguir estancar o choro. Nervosa, brinca com as tranças que a mãe lhe fez de manhã na tentativa de lhe recuperar a infância. A Senhora chega. A mãe entrega um envelope à Senhora. A Senhora abre-o e resmunga qualquer coisa. É altura de beber um liquido verde de sabor muito ácido. O copo está sujo, pensa Sandra. Sente-se doente e sabe que vai adormecer. Chora enquanto dorme.
Carminho acorda do seu sono induzido. Tem a mãe e a médica ao seu lado. Não sente dores no corpo mas as lágrimas não param de lhe correr cara abaixo. Sai da clínica de rosto destapado. Sabe-lhe bem o ar fresco da manhã. É tempo de regressar a casa. Quando a placa da União Europeia surge na estrada a dizer PORTUGAL, Carminho chora convulsivamente.
Sandra não acorda. E não acorda. E não acorda. A mãe geme baixinho desesperada ao seu lado. Pede à Senhora para chamar uma ambulância. A Senhora não deixa: "ponha-se daqui para fora com a miúda, há uma cabine lá em baixo, livre-se de dizer a alguém que eu existo". A mãe arrasta a Sandra inanimada escada a baixo. Um vizinho cansado, chama o 112 e a polícia. Sandra acorda no quarto 122 dias depois. As lágrimas cara abaixo. Não poderás ter mais filhos, Sandra, disse-lhe uma médica, emocionada. Sai do hospital de cara tapada, coberta por um lenço. Não sente o ar fresco da manhã. No bolso junto ao útero magoado, a intimação para se apresentar a um tribunal do seu país: Portugal.
Eu voto sim. Pela Sandra e pela Carminho. Pelas suas mães e avós. Por mim.
Rita Ferro Rodrigues
3 comentários:
É pá, é pá...
Por favor, não usem prosas desta senhora (ou se quiserem usem, isso é convosco :D ).
Ainda este fim de semana devo usá-la como exemplo da hipocrisia anti-anonimato na blogosfera.
Quando foi a propósito do MSTavares era toda contra, mas depois anda no Expresso a promover os "blogues de gajas" todos anónimos.
É daquelas que "anónimos" só os amigos.
Entendo. Mas este texto mostra bem a comparação dos dois lados em relação ao aborto.
Esta questão é uma questão de classe. O problema põe-se sobretudo para as desgraçadas sem dinheiro para ir abortar a Espanha. É um problema de legislação que penaliza as que mais sofrem, é uma questão de saúde pública e é uma questão de classe.
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