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Para a opinião pública mundial, a passagem de ano de 2006 para 2007 foi assinalada não pelas doze badaladas da meia-noite, mas por um dos maiores espectáculos mediáticos de que há memória: a exibição de imagens da execução de Saddam Hussein, repetidas mil vezes pelas televisões e postas à disposição dos “consumidores” por todas as vias hoje possíveis na Internet. Antes de analisar o acto em si e a encenação de justiça que o precedeu, atentemos nesta mediatização inqualificável e nas suas consequências, a começar pelas mais directas: três crianças perderam a vida, ao tentarem reproduzir a “experiência”, em países tão diferentes como a Índia, as Filipinas e… os EUA.
Sobre a execução de Saddam, poucas dúvidas haveria: faltava apenas marcar a data. Mais uma vez, a “falta de jeito” norte-americana, sob a pressão do desastre militar no Iraque e do desastre eleitoral que varreu a administração Bush, ditou a sua lei. Em 2004, aquando da captura de Saddam, o caldo começava a entornar com a divulgação as imagens da prisão de Abu Ghraib, o massacre de Fallujah e a generalização da resistência iraquiana, nas suas múltiplas expressões políticas e religiosas.
Agora, perante a situação catastrófica descrita no relatório Baker, ex-chefe da diplomacia de Bush pai, a exibição de Saddam morto era a derradeira “vitória” de Bush para forçar o Congresso a votar as verbas necessárias ao envio de mais 20 mil soldados para o Iraque – uma curiosa “estratégia de retirada” que só tem paralelo na administração Nixon, quando a anunciada “vietnamização” da guerra a fez alastrar ao Laos e ao Cambodja, “de vitória em vitória” até à derrota total de 1975.
Neste tabuleiro, a justiça foi chamada a desempenhar um papel menor, de farsa ou mero pretexto. É claro que um ditador como Saddam poderia e deveria ser julgado pelo seu povo – nunca por um invasor e por um governo fantoche, ambos defensores da pena de morte, no Iraque como nos EUA. Em Portugal, apesar de tudo, orgulhamo-nos de ela ter sido abolida há mais de um século…
As consequências da execução de Saddam no próprio Iraque, quase quatro anos após a invasão, só não foram piores porque a morte se tornou absolutamente banal: enquanto os EUA contabilizavam três mil soldados mortos, as estatísticas apontam para mais de 600 mil iraquianos. E não custa crer que, entre protestos sunitas e festejos xiitas, a execução de Saddam tenha custado, de imediato, mais umas centenas… Sintomático: o nome Al-Sadr, gritado como última provocação aos ouvidos Saddam, é o do pai de Moqtada Al-Sadr, procurado pelo exército americano após o cerco de Fallujah – Sadr City é, aliás, o bastião xiita de Bagdad que mais resiste às forças de ocupação. E o regozijo do Irão pela morte de Saddam também não augura nada de bom para os EUA…
Em Portugal, é curioso verificar os estados de alma dos apoiantes de Bush e da invasão do Iraque. Pacheco Pereira tenta “discutir as alternativas para a coligação após a invasão”. Seriam americanos e os outros membros da coligação a julgar Saddam, não se sabendo com que base jurídica? Se fosse com base na legislação nacional iraquiana, Saddam seria quase de certeza condenado também à morte. Havia a alternativa de o julgar num tribunal como o de Haia – era provável que, se o julgamento fosse na Europa, Saddam escapasse com vida, mas ficaria preso até ao fim dos seus dias… Havia outra solução, a de levar Saddam para os EUA, como aconteceu com Noriega, mas também aí não seria difícil imaginar o clamor internacional e o impasse jurídico a que se chegaria… Tristes dilemas, para concluir: “Mas é preciso entender que os motivos dos americanos, como acontece com algumas das maiores asneiras cometidas no Iraque, resultam de uma mistura de boa vontade ingénua e negligência na análise cuidada dos riscos.”
O que nem sempre é verdade: à cautela e para não correr riscos, os EUA excluíram-se a si próprios, aos seus militares e responsáveis políticos, da alçada do Tribunal Penal Internacional. Mas o fim da farsa do julgamento de Saddam vem colocar na ordem do dia internacional o clamor de justiça para o Iraque e o julgamento de todos os crimes e criminosos de guerra. É certo que a justiça costuma ser a dos vencedores... Mas haverá alguém mais derrotado que Bush e os seus sequazes?
Em Inglaterra, o Channel 4 vai passar um telefilme no qual Tony acaba a caminho do Tribunal de Haia, em 2010. Mera ficção? As TV’s privadas não brincam às audiências e o tema é, no mínimo, popular. Bush continua na cadeira do poder, mas 2008 é já para o ano… Um conselho: é melhor, por todos os motivos, que o julgamento se realize num país onde não haja pena de morte.
Alberto Matos
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