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Jeremias Costa tem no olhar uma saudade profunda dos arrozais da sua Bafatá natal, situada bem no coração da pátria sonhada por Amílcar Cabral, há perto de meio século. Em Jeremias transparece o orgulho das raízes, numa região vital para a alimentação do seu povo, um povo sofrido mas que mantém a cabeça levantada no meio das tormentas. Um povo que não se dobrou à metralha nem à fome, apesar da imensa superioridade militar do colonialismo que chegou a mobilizar para a Guiné, no auge da guerra e da governação spinolista, cerca de 40 mil homens. A Guiné onde, em 1973, a guerra estava política e militarmente ganha pelo PAIGC e que foi o verdadeiro sepulcro do regime colonial-fascista. A este povo devemos, mais do que a nenhum outro e pelo menos tanto como a nós mesmos, esse “dia inicial, inteiro e limpo”: o 25 de Abril de 1974.
Jeremias era então um menino de 15 anos. Reservado, não conta façanhas desses tempos heróicos, mas facilmente se percebe que pertenceu àquela geração de homens que não tiveram tempo para ser crianças. Viveu, como tantos outros, a esperança da libertação e as dificuldades do percurso, umas naturais, outras nem por isso: a instabilidade político-militar, o desemprego e a fome, a gangrena da corrupção e do despotismo que destruíram mil sonhos. Não será caso isolado, bem pelo contrário: basta olhar para os vizinhos do Senegal e da Guiné-Conakri. Mas cada drama é sempre um drama: a Guiné-Bissau tornou-se um país de emigrantes, por razões económicas mas também humanitárias.
Após o golpe militar de 1998, Jeremias foi para o Senegal trabalhar mas regressou a casa, ao fim de dois anos. Dobrados os 40, não se deu por vencido e embarcou para novo sonho duma vida melhor. O coração pesava-lhe como chumbo quando deixou a Mãe África e aterrou no aeroporto de Lisboa, no final de 2002 – terra estranha, onde só a língua lhe era familiar.
Depois de algumas aventuras, chegou ao Algarve ao romper da Primavera de 2003, não como turista mas para trabalhar nas obras dos paraísos artificiais que, no Verão, servem de lazer a portugueses endinheirados e às muitas e desvairadas gentes com estranhos dialectos do Norte da Europa. E, nessas obras, foi vendo adiada a promessa de um contrato de trabalho que seria a porta da legalização e para mandar reunir a família que ficara na Guiné.
Ajudado por companheiros desta vida difícil, enganado por outros tantos, incluindo alguns patrícios metidos em subempreiteiros mas que faziam tudo na candonga, a esperança do tal contrato salvador ia ficando cada vez mais longínqua. Até que um dia apareceu o Pereira, homem de posses e de boas falas: “eu vou tirar-te desta miséria, vais tomar conta do meu couto de caça no Alentejo”. Jeremias, entretanto baptizado de “Mamadu” pelo patrão e pelos amigos, achou fartura demais; mas nada tinha a perder e lá partiu para nova aventura. Natural de um país de outras caçadas, a gazelas e “bocas brancas”, chegou às faldas da serra de Alcaria Ruiva, em pleno concelho de Mértola, a um lugar a que alguém com muito poder já chamou de “Alentejo profundo”.
Sozinho no monte, via os dias passar. Por companhia, além dos cães, só tinha companheiros de ocasião no café da aldeia onde, passados três anos, todos o estimam – “até as crianças”, diz sem esconder uma pontinha de orgulho. O patrão, de vez em quando, aparecia com os amigos, à caça de perdizes, lebres ou para uma montaria aos javalis; entre patuscadas, lá ia pagando o combinado. Chegou a dar-lhe um contrato por cinco anos; mas era só um papel, sem o carimbo do Ministério do Trabalho e sem validade. A legalização parecia cada vez mais longe. Em Maio de 2004, surgiu uma inscrição para os imigrantes chegados a Portugal até Março de 2003. Jeremias soube e mandou um postal pelo correio, às escondidas do patrão. Este, cada vez mais desconfiado, começou a levá-lo para as obras no Algarve, em Ayamonte e Huelva - “ainda assim, não vão os fiscais aparecer…”.
Até que, em meados de 2005, Jeremias meteu pés ao caminho. Foi a Beja, à associação de que lhe falaram lá no café e à Inspecção de Trabalho. Demorou mas arrecadou. Há dias, recebeu uma carta para ir a Beja pôr o Visto – e até o tal contrato por carimbar serviu… A inspectora de trabalho também apareceu lá no monte. Furioso, ao saber da novidade, o Pereira trouxe um advogado: queriam obrigá-lo a assinar um papel em que aceitava ser deportado… “Se não assinares, eu ponho-te na Guiné em cinco dias!”, ameaçou. Jeremias teve então o supremo gozo de lhe mostrar o Visto e responder: “Patrão, agora sou um homem livre”. Esta história vai continuar, no tribunal.
Alberto Matos
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