quinta-feira, novembro 02, 2006

Alentejanos de Jaen

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Na última crónica abordei o tema de Alqueva na relação com a estrutura fundiária. O latifúndio, já de si parasitário, gerador de atraso, de miséria e desemprego durante quase todo o ano em regime de sequeiro, é absolutamente irracional em sistema de regadio – 50 hectares de regadio podem ser mais produtivos que 1000 hectares de sequeiro. Não é por acaso que a velha classe latifundiária, apoiada nos “ultras” do salazarismo, sempre opôs tenaz resistência ao Plano de Rega do Alentejo e, em particular, a Alqueva, pelo menos desde os anos 50. Alguns expoentes desta corrente, como Pequito Rebelo, confessavam o seu temor ao “socialismo por via hidráulica”.

Sem a intervenção do Estado no fomento ao regadio e à criação de unidades de dimensão racional, através de um banco de terras resultante da expropriação a preço justo de quem não as quiser regar, o mercado funciona de forma selvagem. É assim que os latifundiários estão a vender as terras, ainda não regadas mas já valorizadas pela barragem de Alqueva. Em vez de uma agricultura diversificada, ambientalmente sustentável e capaz de atrair uma nova geração de pequenos agricultores, empresas familiares ou cooperativas, a transição do sequeiro para o regadio está a ser feita mantendo o latifúndio. Mas grandes áreas de regadio implicam uma enorme capacidade de investimento e são sinónimos de monocultura – do olival, da vinha, dos citrinos…

Além do problema agrário, Alqueva veio evidenciar as questões agrícolas e culturais do Alentejo. Apesar dos constrangimentos da PAC, são possíveis e cada vez mais necessárias políticas de orientação agrícola que apostem na agricultura biológica e na qualidade alimentar, na excelência dos produtos regionais e na marca Alentejo. Na Europa e a nível global há mercado para este tipo de produtos, depois dos sobressaltos das “vacas loucas”, da gripe aviária, do abuso de hormonas e de transgénicos pelas agro-indústrias de produção intensiva de dinheiro… e de doenças.

A monocultura, ao pôr em risco a biodiversidade, acarreta graves desequilíbrios ambientais. Como é possível o arranque de perto de 600 azinheiras e sobreiros seculares, nas herdades da Caniceira e Monte Espada, para plantio de “oliveiras de aviário”, com aval da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo e das câmaras municipais de Aljustrel e Santiago do Cacém? Nem é preciso inventar, basta aprender com a experiência alheia: por exemplo, a dos andaluzes de Jaen (cantados por Paco Ibañez) e de muitas outras terras que ficaram quase desprovidas de matéria orgânica, sujeitas a processos de salinização e erosão muito complicados de travar.

De Espanha não chegam apenas malas carregadas de euros para comprar terras. Na última semana, a Green Peace promoveu uma descida do Guadiana, da nascente até à foz, que deve merecer a nossa reflexão. Entre outras questões já aqui abordadas, ficaram-me na memória as imagens de grandes empreendimentos turísticos, resorts e campos de golfe a norte de Ayamonte, mesmo em frente ao magnífico sapal de Castro Marim. E assaltou-me a dúvida: será isto que se prepara para o regolfo de Alqueva? Quando Sócrates era ministro do Ambiente, o plano de ordenamento foi acusado de ser muito restritivo, em particular por autarquias da zona; com Sócrates primeiro-ministro o limite foi multiplicado por 45, passando de 480 para 22 500 camas, distribuídas por 11 unidades turísticas que podem ter até 2500 camas cada, nos concelhos de Portel, Reguengos de Monsaraz, Mourão, Moura, Serpa e Vidigueira e Serpa.

Na miragem do Grande Lago, não se estará a matar a galinha dos ovos de ouro ainda antes de ela chocar os pintos? Ainda por cima, fruto da poluição dos pesticidas e de esgotos despejados para o Guadiana sem qualquer tratamento, por exemplo em Badajoz, a qualidade da água de Alqueva tem problemas que se podem agravar se estas más práticas não forem travadas e se a carga poluente aumentar no território português. Sem esquecer que, além do uso agrícola e da produção de energia eléctrica, o projecto de fins múltiplos de Alqueva foi justificado pela necessidade de constituir uma reserva estratégica de água para abastecimento às populações.

O turismo só poderá constituir uma mais-valia se respeitar e valorizar o rico património natural e cultural do Alentejo. Numa zona ambientalmente sensível, ainda em processo de adaptação à nova realidade física e a pequenas alterações climáticas, sempre imprevisíveis, a quantidade pode matar a qualidade. Um passo em falso poderá causar danos irreparáveis.

Alberto Matos

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