terça-feira, março 21, 2006

Primavera em Bagdade


Hoje, dia da Primavera, apetecia-me tudo menos falar dos três anos de guerra no Iraque, iniciada com a invasão das tropas norte-americanas, britânicas e outras em 18 de Março de 2003. Apetecia-me, ainda menos, recordar que o tiro de partida para esta catástrofe humanitária e até ambiental foi dado na cimeira das Lajes pelo quarteto Bush, Blair, Aznar e Barroso, com este último a fazer de mordomo, envolvendo Portugal num verdadeiro crime contra a Humanidade. Seria cómico, se não fosse trágico, vê-lo agora balbuciar meias desculpas, em Bruxelas, apresentando-se como vítima de credulidade na “amigo americano”, com a mesma convicção com que jurou perante a Assembleia da República ter visto “as provas” alegadas pelos invasores.

Aliás, os apoiantes da coligação guerreira andam numa roda-viva de actos de contrição: “de facto não havia armas de destruição massiva no Iraque” – pudera, se já nem Bush & Blair tentam sustentar esta mentira… Alguns reconhecem a situação caótica em que mergulharam o Iraque para concluir, afinal, que as tropas invasoras não podem retirar – mas como daí a seis meses a situação será seguramente pior, está justificado o princípio da guerra infinita.

A invasão do Iraque, além de uma tragédia para o seu povo e para a causa da Paz, revelou-se um fracasso absoluto relativamente a todos os objectivos para ela invocados: em vez da eliminação do terrorismo e da imposição armada da democracia, o Iraque vive hoje em estado de caos absoluto. Do “parlamento” eleito em Dezembro de 2005, apesar de uma sólida maioria xiita, não sai qualquer governo nem este disporia de poder real num país onde a resistência aos ocupantes e várias guerras civis (curdos, xiitas, sunitas) se entrelaçam.

Crimes hediondos contra a humanidade, com a utilização de fósforo branco contra populações civis de Fallujah e não só, foram perpetrados pelas tropas norte-americanas, a somar às torturas bárbaras impostas a prisioneiros de guerra na prisão de Abu Ghraib e aos maus tratos indiscriminados contra a população civil. Longe de ter sido eliminado, o terrorismo fundamentalista encontrou no Iraque um teatro de operações e de recrutamento privilegiado, ganhando novos apoios e prestígio entre as massas muçulmanas humilhadas e sem perspectivas de futuro; por último (e não menos importante), as forças ocupantes enfrentam uma situação de impasse militar que já levou ao anúncio de reduções de contingentes, inclusive da Grã-Bretanha, depois da retirada da Espanha e de outros países.

Todos estes factores aconselhariam a máxima prudência antes de nova investida, como a que se prepara contra o Irão. Nem o controle do petróleo do Médio Oriente justifica por si só este aparente aventureirismo. Os EUA delegaram nos aliados europeus e na Rússia a primeira linha de pressão sobre o programa nuclear iraniano, resguardando-se para um previsível endurecimento da situação. Apesar das diferenças de tom da Rússia e da China, tudo aponta para uma melhor articulação entre os diversos parceiros, ao nível do Conselho de Segurança da ONU, de forma a darem cobertura legal a uma intervenção militar. Fala-se, inclusive do recurso a armas nucleares “tácticas” contra alvos iranianos. A participação da Turquia e de Israel em tal aventura ameaça incendiar o Médio Oriente e pode estender-se até ao Paquistão – uma ditadura militar “amiga” dos EUA que possui armas nucleares e já esteve mais longe de cair em mãos fundamentalistas…

A guerra é muito mais que um capricho demencial de George W. Bush e de meia dúzia de fanáticos neocons. Além do mais, ela visa colmatar a debilidade económica dos EUA, sustendo a cotação do dólar e a liderança de Wall Street nas bolsas mundiais. A balança de pagamentos norte-americana atingiu, em 2005, o maior défice comercial da sua história: 723,6 biliões de dólares! Qualquer outro país, com um quadro macroeconómico semelhante, já teria sido submetido a um rigoroso plano de austeridade e de ajuste estrutural do FMI, só evitado pelo afluxo financeiro ininterrupto à bolsa de Wall Street e pela supremacia militar dos EUA.

Eis as verdadeiras causas da “guerra infinita” que começou no Afeganistão, se estendeu ao Iraque e ameaça hoje o Irão, amanhã a Síria ou o Paquistão, na realidade a todos nós, em todo o mundo. Por isso devemos exigir a retirada dos soldados portugueses do Afeganistão e abraçar a causa da Paz, como fizeram dezenas de milhares de manifestantes em centenas de cidades de todo o mundo, 18 de Março. Para que volte a haver Primavera em Bagdade!

Alberto Matos

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