Numa semana marcada pelo cerimonial mediático de despedidas e tomadas de posse do Presidente da República, veio-me à memória um conto de Manuel da Fonseca, velho amigo de longas histórias e inesquecíveis patuscadas que começavam ao jantar no “Beco”, em Beja, e nunca se sabem onde e a que horas terminavam: “O Fogo e as Cinzas”. Recordo a forma desprendida, bem-humorada e mordaz como o Manuel encarava o cerimonial do poder e, quase sempre, o desprezo que votava aos seus detentores. Entre balanços do Presidente que sai (sem deixar saudades) e prognósticos para o Presidente que entra, entremeados com o primeiro aniversário do governo Sócrates, apetece-me brindar à tua saúde, Manel, que continuas mais jovem de espírito que eles todos juntos, lembrando uma frase célebre do pós-25 de Abril: “é só fumaça”!
Esta evocação de “O Fogo e as Cinzas” vem a propósito da decisão do governo de levar por diante a co-incineração de resíduos industriais perigosos, recorrendo às cimenteiras do Outão, em pleno parque natural da Arrábida, e de Souselas, às portas de Coimbra. Alguns vêem aqui um sinal de coerência de Sócrates, outros a teimosia e a intransigência que o derrotaram enquanto ministro do Ambiente. É certo que hoje tem uma maioria absoluta e, a partir desta semana, um Presidente da República também derrotado quando tentou introduzir em Portugal uma incineradora de resíduos industriais – a diferença entre eles “está apenas no “co”, isto é, em saber se os RIP serão devem ser queimados nas cimenteiras ou numa incineradora construída de raiz para esse fim. Arriscam-se é a ter contra si uma maioria absoluta, não apenas das populações das zonas de Setúbal e de Coimbra mas também a opinião pública esclarecida, ao longo de mais de uma década de debate.
A primeira investida do lobby da incineração ocorreu à volta de 1990, tendo como alvo Sines. Na altura não se discutiam alternativas nem estudos de impacto ambiental: no auge do cavaquismo, à beira da segunda maioria absoluta, era em Sines e mais nada; aliás o pessoal já estava habituado à poluição da petroquímica, da GALP, da central da EDP, não havia de estranhar uma incineradora… O plano era perfeito, chegando a seduzir autarcas passeados por essa Europa para contemplar belos espaços verdes, em redor das incineradoras e aterros; só não contava com a reacção das populações da cidade que, há mais de 20 anos, fez a primeira greve ecológica deste país! Sines, vizinha e amiga da velha Miróbriga, a Santiago do Cacém natal do nosso Manuel da Fonseca, com quem cheguei a discutir este assunto pouco antes de nos deixar, em 1993.
Foram meses e anos de intensa participação popular, animada pela Comissão de Luta de Sines, com posterior adesão das autarquias vizinhas. Foram jornadas de educação cívica e até científica: o salão dos Bombeiros à pinha, pescadores e todas as camadas da população questionando os ecologistas e professores norte-americanos que relataram a experiência trágica de mais de 40 anos de incineração nos EUA, com indicadores claríssimos de incidência de cancro e doenças respiratórias em áreas circundantes das incineradoras, por vezes além de 100 quilómetros. Ficou-me para sempre gravada a desmontagem do mito do fogo purificador “que tudo destrói”, oposta a uma velha máxima da química: “na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E transforma para pior, neste caso: os hexa-cloro-benzenos, presentes sobretudo no plástico que invadiu a vida moderna, dão origem a dioxinas e furanos – o veneno mais concentrado que o homem alguma vez produziu, supostamente e por ironia do destino, em nome do combate à poluição!
Quinze anos depois, não estamos no mesmo ponto de partida. Os vários debates têm deixado claro que há alternativas à incineração de RIP, nomeadamente para as 70 mil toneladas de óleos minerais usados e solventes que podem ser regenerados e reutilizados, mas que são os mais apetecidos pelas cimenteiras, por serem um combustível barato e de alto valor energético. A teimosia de Sócrates é hoje um retrocesso porque torna a co-incineração definitiva, ao contrário do compromisso que assumiu em 2001, na Convenção de Estocolmo; é um retrocesso também porque inverte a ordem de prioridades de uma política integrada de tratamento de RIP por fileiras, quando o OE para 2006 já contempla a instalação de dois Centros de Recuperação, Valorização e Eliminação de Resíduos Perigosos – os CIRVER. A alternativa é clara: negócio das cimenteiras ou defesa da saúde publica e de um desenvolvimento sustentável.
Não queremos um país a fogo e cinzas!
Alberto Matos
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